Alerta vermelho
Inédito aumento da mortalidade infantil no Brasil expõe um país vergado pela crise, enredado em doenças do passado e sob risco de apagar avanços históricos
De todas as estatísticas que dão feição a um país e apontam seu lugar no futuro, a mais reveladora é a taxa de mortalidade infantil, expressão técnica e fria para descrever a tragédia das crianças que morrem antes de completar 1 ano. Quanto mais o ponteiro desse marcador recua, mais significa que um país avançou. Quando ele sobe, porém, expõe o exato oposto: a realidade de uma nação que falhou no dever mais básico, o de garantir o direito à vida, e que está andando para trás. O Brasil, lamentavelmente, passou a se encaixar no segundo caso. A taxa de mortalidade infantil, que só caía desde que começou a ser medida ano a ano, em 1990, mudou de direção no cálculo mais recente, de 2016: subiu 5% — de 13,3 para 14 em cada 1 000 nascidos vivos.
Parece pouco. Mas esse soluço do índice, combinado com a estagnação prevalente nos últimos anos, acende um alarmante sinal vermelho na acidentada trajetória brasileira rumo ao mundo desenvolvido. “Os dados são reflexo da piora na condição de vida das pessoas, causada pela crise econômica, a falta de emprego e a retração nos investimentos em políticas sociais”, diz Fátima Marinho, diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis do Ministério da Saúde. “O Brasil teve o mérito de reduzir muito a mortalidade infantil, sobretudo nas áreas de maior incidência — um trabalho de décadas que pode ser destruído rapidamente.”
De todas as estatísticas que dão feição a um país e apontam seu lugar no futuro, a mais reveladora é a taxa de mortalidade infantil, expressão técnica e fria para descrever a tragédia das crianças que morrem antes de completar 1 ano. Quanto mais o ponteiro desse marcador recua, mais significa que um país avançou. Quando ele sobe, porém, expõe o exato oposto: a realidade de uma nação que falhou no dever mais básico, o de garantir o direito à vida, e que está andando para trás. O Brasil, lamentavelmente, passou a se encaixar no segundo caso. A taxa de mortalidade infantil, que só caía desde que começou a ser medida ano a ano, em 1990, mudou de direção no cálculo mais recente, de 2016: subiu 5% — de 13,3 para 14 em cada 1 000 nascidos vivos.
Parece pouco. Mas esse soluço do índice, combinado com a estagnação prevalente nos últimos anos, acende um alarmante sinal vermelho na acidentada trajetória brasileira rumo ao mundo desenvolvido. “Os dados são reflexo da piora na condição de vida das pessoas, causada pela crise econômica, a falta de emprego e a retração nos investimentos em políticas sociais”, diz Fátima Marinho, diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis do Ministério da Saúde. “O Brasil teve o mérito de reduzir muito a mortalidade infantil, sobretudo nas áreas de maior incidência — um trabalho de décadas que pode ser destruído rapidamente.”
VEJA visitou Aquiraz, no Ceará, o município com a mais alta taxa de mortalidade infantil do país — 24,9 para cada 1 000 nascidos —, segundo levantamento do Instituto IDados. Encontrou lá uma fotografia em tom sombrio de um Brasil em marcha a ré. Só 36% dos 80 000 moradores têm esgoto sanitário adequado (a média nacional é 52%) e o acesso à água potável era privilégio de apenas 32% em 2015 (no Brasil chega a 97%). Os dois serviços são imprescindíveis para a prevenção de diarreia, infecções e doenças parasitárias. No mesmo ano, a cobertura de vacinação não alcançou 60%, a menor desde 2010. A única maternidade está em obras. Enquanto isso, o número de leitos na cidade baixou de oito para cinco. “É difícil criar minhas netas aqui”, diz Moacir Mendonça, 78 anos, que não tem em casa nem esgoto nem água encanada.
A Secretaria da Saúde de Aquiraz associa o desonroso primeiro lugar da cidade em mortalidade infantil à grande incidência de óbitos por microcefalia provocada pelo vírus da zika. Esse vírus é justamente uma das justificativas do Ministério da Saúde para o aumento da taxa de mortalidade, um cálculo feito a partir da relação entre mortes e nascimentos. O ministério argumenta que em 2016 nasceram 5,3% menos bebês do que no ano anterior, principalmente pelo pânico causado pela epidemia de zika, e essa queda teria empurrado a taxa para cima. O infectologista Edimilson Migowski, professor de doenças infecciosas da UFRJ, refuta a afirmação. “A natalidade já vinha caindo fazia anos. É um equívoco atribuir à zika essa variação de agora”, diz. E arremata: “Não se vê nas estatísticas de nenhum país uma relação entre queda dos nascimentos e aumento da mortalidade. Em geral, ocorre o inverso”.
Se a justificativa do zika vírus é controversa, há absoluto consenso em relação à outra causa citada pelo Ministério da Saúde para a alta da mortalidade: a crise econômica profunda e persistente, que derreteu recursos, implodiu programas sociais, aumentou a pobreza e a desnutrição e agravou a já precária estrutura de serviços básicos. Em Ilhéus, na Bahia, detentora do segundo pior índice de mortalidade infantil do país — 24,25 por 1 000 nascidos —, a reportagem de VEJA encontrou na periferia condomínios populares lotados, casas de madeira sem ventilação nem higiene e crianças brincando na rua em meio ao lixo. A única maternidade não tem UTI neonatal. Há 35 vagas disponíveis, sete a menos do que em 2012, embora no mesmo período a média de partos mensais tenha passado de 280 para 350. Na periferia da cidade, o coveiro Carlos Novais aponta para um pedaço de terra entre os túmulos e a estrada. “É aqui que a gente arruma um lugar para as crianças, porque não tem mais espaço no cemitério, não”, diz. Em um ponto mais alto, uma cruz verde indica o local onde jaz Heloísa N. de Jesus, a cova infantil mais recente preparada por Novais.
Como não há período integral nas escolas de Ilhéus, as crianças só têm acesso a um lanche no meio da manhã. “Muitas vezes o cardápio se resume a biscoito e suco, e essa é a principal refeição de boa parte delas”, afirma o vereador Makrisi Sá. A taxa de desnutrição crônica no Brasil no ano passado, segundo a Fundação Abrinq, foi de 13,1% entre crianças de até 5 anos, um aumento em relação aos 12,6% de 2016. “Desnutrição e mortalidade infantil andam de mãos dadas, porque a criança malnutrida é mais vulnerável”, explica o médico sanitarista Nelson Neumann, coordenador internacional da Pastoral da Criança no Brasil. Adultos desnutridos também afetam o desenvolvimento dos filhos. “A má nutrição da mãe pode resultar em crianças menos saudáveis pela vida inteira.”
A ocorrência de baques econômicos em um país desenvolvido não influi em sua taxa de mortalidade infantil porque o sistema de saúde funciona bem e não se desfaz com um sopro. Já em países como o Brasil, com um SUS precário e claudicante, qualquer vento adverso transforma dificuldade em tragédia. Pesquisa do Datafolha mostra que 55% dos brasileiros consideram o sistema ruim ou péssimo e sete em cada dez relataram dificuldade em marcar consulta com especialistas. Com recursos mutilados, a saúde pública perdeu 24 000 leitos de internação entre 2010 e 2015. Enquanto a falta de dinheiro desmonta o SUS, a demanda, impulsionada pela mesma economia fraca, vai aumentando. “Milhares de pessoas saíram dos planos particulares e estão usando a saúde pública”, aponta o pesquisador Davide Rasella. Iniciativas do governo para frear a mortalidade na infância estão desmoronando junto com o SUS. O Programa Saúde da Família, que faz atendimento de base, perdeu 1,5 bilhão de reais entre 2015 e 2016. A verba do Rede Cegonha, que orienta mulheres durante a gestação, encolheu 18%.
Os problemas econômicos também alimentam uma escalada da violência inédita — a ponto de ocorrências como homicídios infantis e balas perdidas se tornarem a causa de mortalidade infantil por fatores externos que mais cresce. Essas mortes por violência são contabilizadas no SUS no mesmo pacote de acidentes de carros e quedas, mas foi principalmente devido a elas que o item apareceu como a quarta maior causa de óbitos de crianças de até 5 anos. Benjamin da Silva, de apenas 2 anos, morreu em março, vítima de bala perdida em uma favela do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. A perda do bebê dilacerou a família. A mãe, Paloma, que havia deixado as drogas ao engravidar da primeira filha, saiu de casa e voltou ao vício. “Perder um filho no carrinho de bebê, comendo algodão-doce, é absurdo”, desabafa Fabio Antônio da Silva, de 38 anos, pai de Benjamin.
(Arte/VEJA)
Em paralelo, e estremecendo ainda mais as projeções para o futuro, a vacinação tanto de adultos quanto de crianças, que já rendeu
Em paralelo, e estremecendo ainda mais as projeções para o futuro, a vacinação tanto de adultos quanto de crianças, que já rendeu prêmios ao Brasil pela abrangência, está perdendo vigor. A cobertura em crianças de até 1 ano bateu no menor nível desde 2000. A Tetra Viral, que previne contra sarampo, caxumba, rubéola e varicela, foi aplicada em 90% das crianças em 2014. Em 2016, o índice foi de apenas 70%. Uma em cada quatro cidades registra números abaixo da meta do Ministério da Saúde. “A população perdeu o medo de doenças consideradas erradicadas e relaxou”, diz Isabela Ballalai, da Sociedade Brasileira de Imunizações. As restrições de horário nos postos por falta de dinheiro também contribuíram para emperrar a engrenagem.
As causas diretas da morte de crianças no Brasil são conhecidas e, em sua maioria, evitáveis (veja o quadro abaixo). Uma das mais vergonhosas, pela capacidade de escancarar o subdesenvolvimento nacional, é a diarreia — o número de óbitos em razão de complicações decorrentes da doença aumentou 12%. “A diarreia, bem como as enfermidades parasitárias, está ligada à falta de condições básicas de higiene”, explica o infectologista Migowski. Mas, se a pobreza mata, a ausência de prevenção apressa o processo. “Historicamente, investimos 20% em prevenção e 80% na solução de problemas que poderiam ter sido evitados”, destaca. Dados do Trata Brasil, organização que acompanha as condições sanitárias do país, mostram que 48% da população não dispõe de coleta de esgoto — ainda que estudos comprovem que, a cada 1 real investido em saneamento, 4 reais deixam de ser gastos em saúde. Se a coleta fosse universal, haveria redução de 75 000 internações por ano em decorrência de infecções gastrointestinais. Em Macapá, a capital brasileira com o pior índice de mortalidade infantil — 17,75 por 1 000 nascidos —, a pobreza e a precariedade de serviços corroem o cotidiano nos casebres onde se amontoa a população mais pobre. A cidade tem uma única maternidade para gestação de alto risco, que atende a população de todo o estado e até gestantes vindas do vizinho Pará.
De 2015 para 2016, o SUS registrou 154 casos a mais de crianças que perderam a vida por culpa de doenças respiratórias perfeitamente tratáveis, como pneumonia. “Sem dinheiro em caixa, os estados substituíram pediatras por médicos generalistas, o que prejudicou o diagnóstico e o tratamento”, diz o neonatologista José Maria Lopes, da Sociedade Brasileira de Pediatria. Em abril, a auxiliar administrativa Miriam do Nascimento notou que a filha Maria Júlia, de 2 anos, tinha febre e tossia muito, e a levou a um posto médico. Maria Júlia foi medicada com antibiótico para debelar uma virose. Nove dias e três idas ao posto depois, Miriam levou a menina a um hospital em Santos, no litoral de São Paulo, onde ela foi diagnosticada com um quadro grave de pneumonia e internada na unidade de tratamento intensivo. “Vi técnicos de enfermagem que nem sabiam medir a febre”, conta Miriam. Maria Júlia morreu em 14 de maio.
A maior vilã da lista, de longe, são as doenças adquiridas no chamado período perinatal, entre a 22ª semana de gestação e o sétimo dia de vida do bebê. A esse grupo de males que podem começar ainda dentro da barriga da mãe se atribui praticamente metade dos óbitos de crianças de até 5 anos. Embora soe cruel, essa estatística embute um avanço: significa que doenças mais complexas superaram a diarreia e os parasitas na mortalidade infantil. Mas há neste ponto uma distinção importante entre o Brasil e o mundo desenvolvido. As doenças do perinatal que acometem os bebês daqui são decorrentes de situações complicadas, como doenças congênitas, mas também resultam da carência muito brasileira de cuidados básicos no pré e no pós-natal. A situação melhorou — mas a melhora desacelerou: a queda nessas mortes, de 23% entre 2004 e 2010, não passou de 11% nos seis anos seguintes. Um dos freios foi o aumento de prematuros, que têm menos defesas — a probabilidade de eles terem problemas respiratórios, por exemplo, cresce 120 vezes.
Um estudo da Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul, mostra que, em 1982, 5,8% dos nascimentos eram prematuros. Em 2015, mais do que duplicaram, para 13,8%. A prematuridade permeia todos os grupos sociais. Entre as mulheres com mais recursos, o bebê nasce antes do tempo por causa, em grande parte, da opção preferencial pela cesariana — e ele pode não estar pronto. Já no grupo das mulheres pobres, é a gravidez sem acompanhamento médico que anda antecipando os partos. “Quando uma mulher pobre dá à luz um prematuro, é quase certo que algo não foi contemplado no pré-natal”, afirma a médica Albertina Duarte. E prevenção, na gravidez, é o caminho mais seguro para seu bom termo.
Quanto mais a mulher estuda, mais consciente ela é dos cuidados e das providências que precisa tomar para que a gravidez corra bem e o bebê sobreviva. Essa relação se esgarça quanto mais a pobreza prevalece e se rompe de vez quando a grávida é, ela mesma, uma criança — 18% dos partos são de meninas de 10 a 17 anos. “Quanto mais baixa a idade da mãe, mais ela demora a procurar um médico, e isso aumenta as possibilidades de complicações com o bebê”, diz a demógrafa Suzana Cavenaghi.
Com um nome inversamente proporcional ao seu tamanho, Kherollyn Jasminny Vitória dos Santos Silva nasceu antes de completar seis meses no útero, em dezembro de 2016, no Rio de Janeiro. O parto foi antecipado porque a mãe, a estudante Yasmin, na época com 17 anos, contraiu uma infecção urinária grave. Kherollyn foi transferida de hospital para hospital, devido ao alto custo da internação, e morreu no fim do ano passado, com 1 ano e 19 dias.
Reverter esse cenário passa inexoravelmente pela recuperação de um país que atravessa a pior crise da sua história. Em 2016, o Brasil completou dois anos seguidos de queda do PIB pela primeira vez desde 1948. A recessão de 2014 a 2016 é parecida com aquela vivida entre os governos José Sarney e Fernando Collor. A diferença está na retomada, muito mais lenta. Com isso, a pobreza extrema avançou 11,2% no país, atingindo quase 15 milhões de pessoas em 2017, segundo levantamento da LCA Consultores.
O recuo, claro, agrava a desigualdade social, uma praga que entrava o desenvolvimento e afeta diretamente o indicador mais sensível da saúde do país. “A desigualdade é um freio de mão para o combate à mortalidade infantil”, afirma o demógrafo José Eustáquio. A mesma desproporção na distribuição da renda empurra o Brasil para a quinta maior taxa de mortalidade infantil no ranking da OCDE, em que perde apenas para Colômbia, Indonésia, África do Sul e Índia, a campeã.
Isso não quer dizer que o combate à mortalidade infantil não tenha dado certo no Brasil. Pelo contrário, sua taxa de sucesso é uma das maiores do mundo. Em 1970, o índice era de 115 mortes por 1 000 nascidos vivos. Duas iniciativas tomadas nos anos seguintes seriam definitivas para derrubar esse vexame. A primeira, dos anos 1980, introduziu em escala nacional o uso de soro caseiro para combater a desidratação provocada por doenças como diarreia, campanha encabeçada pela Pastoral da Criança. A segunda virada promoveu a imunização em massa e teve seu momento de glória em 1989, quando se registrou o último caso de poliomielite no país. Em consequência das duas iniciativas, no início dos anos 1990 a mortalidade infantil havia caído pela metade, para uma taxa de 47,1 por 1 000 nascidos. E continuou diminuindo. Até parar de descer e, agora, subir — para a vergonha de todos e tristeza geral da nação.
Publicado em VEJA de 25 de julho de 2018, edição nº 2592